Distinção e aplicação da terminologia
Fugindo da singela explicação do plano salvífico que a maioria dos evangelistas apresentam aos incrédulos nas inúmeras campanhas e cruzadas evangelísticas, a santificação, como disciplina teológica, possui ampla abrangência.
A chave da doutrina da expiação que é vislumbrada no Novo Testamento é elucidada no rito sacrificial normatizado no Antigo Testamento e, dessa mesma forma, chegaremos ao real sentido da doutrina nos escritos cristãos que tratam da santificação, apreciando toda a discussão veterotestamentária sobre esta etapa da salvação.
Por primeiro, precisamos considerar que “santificação”, “santidade” e “consagração” são expressões sinônimas, de forma idêntica aos termos “santificados” e “santos”. Santificar, logo, é a mesma coisa que “tornar santo” ou “consagrar”. Dessa definição, extraímos os seguintes significados:
Separação
A palavra santo descreve a característica que é inerente à ação cuja natureza é divina e seu significado mais apropriado é separação. Partindo desse ponto, santificação será o atributo que condicionará o agente à separação de tudo o que é humano e terreno, visto que ao ser atingido por esse benefício, o homem passa a “estar em Deus”, isto é, passa a servir-lhe segundo sua vontade, tomando por parâmetro a perfeição moral absoluta de Deus e sua majestade. Quando o Santo (Deus) intensiona usar alguém ou algo para executar seus desígnios, Ele “separa” esta pessoa ou objeto de seu convívio comum para que, em virtude dessa separação tanto pessoa como objeto passam a ser “santos”.
Dedicação
A santificação envolve, num mesmo estágio, a “separação de’’ e a “dedicação a” alguma coisa. Essa deve ser necessariamente, a condição dos crentes que foram separados do mundo e do pecado para serem feitos participantes da natureza divina, estando assim consagrados para o serviço divino através do Mediador. O termo “santo” encontra maior intimidade com o culto cristão, por isso, quando aparece relacionado aos homens ou coisas empregadas nestes cultos, refere que eles são assim qualificados para que possam ser inseridos nesse meio, mas não apenas para uma servidão temporária, antes, eterna, por terem se tornado propriedade exclusiva do Senhor (1Pe 2.9 – ARA). Israel é uma nação santa por ter sido dedicada à obra de Deus; os levitas são santos por terem sido dedicados aos serviços do Tabernáculo, os sábados e os dias de festas, segundo a Lei, são santos porque representam a consagração do templo a Deus.
Purificação
Embora o pensamento mais usual de “santo” seja o de separação, ele também acomoda a idéia de purificação. Esta purificação é determinada pelo fato de que tudo e todos os que são consagrados a Deus para sua obra, operam segundo a agência do caráter divino. Para sintetizar esta idéia, basta considerar que tudo o que é empregado por Deus em seu serviço e Templo, deve ser limpo. Essa pureza é uma das condições da santidade, da qual deriva ainda, como já visto, a separação e a dedicação. A escolha de uma pessoa ou artefato para servirem a Deus em sua obra, implica necessariamente que ambas sejam purificadas e, nesse sentido, que se torne santo. Vemos isso quando se fala sobre a escolha de objetos inanimados para os procedimentos cultuais do Templo, que tal qual a pessoa, são assistidos pela purificação, consagração e santificação: “Então tomarás o azeite da unção, e ungirás o tabernáculo, e tudo o que há nele; e o santificarás com todos os seus pertences, e será santo. Ungirás também o altar do holocausto, e todos os seus utensílios; e santificarás o altar; e o altar será santíssimo. Então ungirás a pia e a sua base, e a santificarás” (Ex 40.9-11). O povo escolhido, por sua vez, foi santificado também pelo sangue do sacrifício da aliança (Ex 24.8). Moisés consagrou os sacerdotes na qualidade de representantes de Deus entre eles; lavando-os com água; ungindo-os com azeite e aspergindo sobre eles o sangue da consagração (Lv 8).
Consagração
Num sentido imediato, consagração é a manutenção de uma vida que se vive em constante santidade, primando sempre pela justiça em consonância com a Palavra de Deus. Poderíamos distinguir a santidade da justiça? Sim, pois a justiça, em sua definição ortodoxa, seria a apresentação da vida regenerada em conformidade com a Lei Divina (1Jo 3.6-10). Santidade, distinta da justiça por uma linha aparentemente tênue, é a vida regenerada que se vive em conformidade com a Natureza Divina e que se dedica ao serviço divino, o que exige a remoção de quaisquer obstáculos (impureza moral e do caráter) que possam obstruir este serviço ou frustrar-lhe o sucesso. Isso também é ensinado por Pedro em sua primeira epístola universal (1 Pe 1.15).
Serviço
Em decorrência da Aliança que é oferecida por Deus e que venha a ser aceita pelo homem, forma-se um estado de relação no qual Deus torna-se o Senhor deles e eles se tornam povo de Deus. Num sentido espiritual, trata-se do agrupamento de pessoas que, reconhecendo-o como Deus, rendem-lhe adoração de múltiplas formas. Baseado nesta característica, o “servir a Deus” refere-se a tornar-se-lhe um sacerdote, ou seja, estar investido de autoridade para executar os mandados divinos; fazer a sua obra. Desse conceito se depreende que não é possível esperar que um pecador nato e que se deleita no mal, eivado de toda impureza, venha espontaneamente a se tornar um “servo” digno da obra que lhe está proposta (1Pe 2.9). A purificação que habilitará o crente ao “serviço divino” deve, pois, já ter produzido seus efeitos. Diferem os procedimentos sacrificiais neotestamentários daqueles procedidos antes do advento da graça, pois não observam o derramamento de sangue, antes, atêm-se às determinações cristãs para este quesito da liturgia (Jo 8.32,36; Rm 6.19; 12.1). Este define-se, então, como prática a ser observada na vida cristã que enfatiza e retrata uma real santificação que se traduz na empreitada evangélica.
A obra sobrenatural da Santificação
Quando a doutrina da santificação nos é apresentada segundo os parâmetros bíblicos, revelando um procedimento sobrenatural pelo qual Deus nos purifica de toda a iniqüidade passada, essa apresentação tem objetivos que superam a idéia de apenas demonstrar aos homens que o objetivo divino na santificação vai além da ação de purificação.
Uma das heresias primitivas combatidas pela ortodoxia cristã da santificação se originou nos discursos do teólogo britânico Pelágio (360-420), o qual atribui a santificação uma mera reabilitação moral.
Não é raro observarmos casos de pessoas que, outrora envolvidas com toda espécie de leviandades, mudaram seu modo de vida drasticamente passando a adotar posturas mais moderadas, puras e benevolentes. Muitas podem ser as causas dessa alteração no comportamento e, algumas delas, de alguma forma, podem estar relacionadas a algum tipo de valor espiritual ou motivação advinda dos próprios interesses.
Todavia, qualquer desses motivos não se achará assemelhado ao que efetivamente ocorre com aqueles que usufruem a boa dádiva da santificação, uma vez que ambos os fatos divergem na mesma proporção que há na distinção entre um coração limpo e um vestido limpo.
A alteração que é observada externamente naquele que “se regenera” com base nos valores terrenos não promove qualquer alteração nos conceitos morais que este indivíduo já possuía, permanecendo, aos olhos de Deus, carente de seu amor, isento da fé em Cristo (que provém de Deus) e, em conseqüência, destituído de um relacionamento íntimo e frutífero com seu Criador.
A santificação, como obra divina sobrenatural, não pode ser comparada ao caráter que fora estabelecido por formação moral bem estruturada e que advenha de uma cultura disciplinada.
Pessoas que estão inseridas nesta ordem de indivíduos apresentam um comportamento social virtuoso e que muito se assemelha ao dos jovens de formação cristã que se acham inscritos entre os “santos”, já que é perfeitamente possível, através de uma cuidadosa instrução moral, a manutenção de um círculo de relacionamentos sadios e a preservação de muitos males peculiares da sociedade atual.
Esta iniciativa é de muita valia e não deve ser menosprezada, contudo, nenhum desses cuidados é capaz de transformar a natureza de uma pessoa no seu íntimo, ou seja, no âmago de seu ser, na essência de sua personalidade, já que esta realidade se procede no domínio espiritual. Noutras palavras, não pode comunicar-lhe a salvação.
Numa analogia prática e definitiva, podemos rememorar Cristo realizando a cura num cego, para o que, não se observam atividades intermediárias de qualquer natureza que estivessem entrepostas à vontade de Jesus e o efeito da mesma.
Vimos que na obra regenerativa a alma é passiva, visto que não é a ela (ou nela) que se procede a comunicação da vida espiritual, mas no espírito do homem. Entretanto, a alma (psyquê), sede do intelecto e das emoções, no que concerne à conversão, ao arrependimento, à fé e ao crescimento espiritual, todo o seu potencial é despertado para a atividade.
Não obstante a isso, como os efeitos produzidos neste ato vão além da capacidade que é inerente a nossa natureza decaída, devendo-se antes à atividade do Espírito Santo, à santificação não deixa de ser sobrenatural, ou ainda, uma obra da graça divina.
Faculdade ICP
Pastor Muller