Segundo a Teologia Sistemática de Horton, a história nos conta que Martinho Lutero compreendeu, durante a preparação de uma aula de exegese que lecionaria na Escola Teológica de Wittenberg, que a justificação ocorre tão somente pela manifestação da fé, a partir do que, inaugura sua conversão, tornando-se efetivamente cristão. Sua recém-descoberta lhe proporcionara então, uma transbordante alegria pelo evangelho.
Disso resultou a mais calorosa disputa entre a Igreja Católica Romana e a Reforma Protestante, isto é, uma disputa acerca dos meios da justificação.
Para que possamos garantir uma apresentação incontaminada do evangelho às gerações futuras, é imprescindível que estruturemos bem, neste tempo, a doutrina da justificação. Ainda que nos dias atuais, notamos que uma visão correta da disciplina da justificação é a linha que divide o evangelho autêntico e refere uma salvação somente pela fé, dos falsos evangelhos baseados nas boas obras.
A amplitude do tema não deve impedir o anseio dos vocacionados de buscar mais pleno conhecimento desta área da ortodoxia bíblica, já que uma visão correta da justificação é crucial para a compreensão da fé cristã em sua totalidade.
A justificação mostra-se a nós como termo especialmente forense, lembrando-nos os procedimentos judiciais peculiares aos tribunais propriamente dito. O homem natural, herdeiro comum da culpa pelo pecado original e estando já condenado (Jo 3.18; Tt 3.11), segundo a fé é absolvido perante Deus, isto é, justificado.
Assim como a regeneração provoca uma mudança na natureza humana, a justificação, por seu propósito, altera nossa condição espiritual diante de Deus.
Justificação, numa observação mais objetiva, é vinculada ao ato salvífico infinitamente justo e plenamente satisfatório de Cristo na cruz, através do qual, Deus declara os pecadores previamente condenados como “livres” de suas culpas, tanto do pecado original como da continuação culpada inerente ao homem, livrando-o das conseqüências e passando a reputá-lo por justo aos seus próprios olhos. O Deus que abomina “o que justifica o ímpio” (Pv 17.15), não abala sua própria justiça, por justificá-lo Ele mesmo, dado ter sido Ele o resgatador que deu quitação às nossas dívidas e, de tal forma eficaz, que sua extensão não pode se exaurir, isto é, se estende a todos em todos os tempos (Rm 3.21,23).
Postados, portanto, diante de Deus, segundo seu chamado e justificação, achamo-nos absolvidos de nossos crimes.
A justificação sobre a qual discorre o Antigo Testamento, vale-se da terminologia tsaddiq em Êxodo 23.7 e Deuteronômio 15.1, enquanto que o texto grego neotestamentário emprega dikaioo (Mt 12.37; Rm 3.20), sempre sugerindo uma conotação judicial.
Não se observa, todavia, uma justificação automatizada, ou seja, amparada numa ficção jurídica, qualificando-nos a nós mesmos como justos sem que efetivamente o sejamos.
A justificação conseqüente da fé é aquela que possui eficácia, condicionada ao “estarmos nele” (Jesus) como prega Paulo em Efésios 1.4,7,11, posto ter sido ele (Jesus) feito, dentre outros aspectos salvíficos, nossa justiça (1Co 1.30). A fé, nesse sentido, atribui caráter de “justo” ao homem, porque Deus a ele credita justiça, imputando-lhe isenção da culpa como favorecimento, contrariamente a sua situação original, para qual já estava estabelecida a pena.
A carta de Paulo aos romanos apresenta dois argumentos em favor da justificação imputada ao homem por Deus. Referendando o Antigo Testamento, Paulo cita o exemplo de Abraão em Gênesis 15.6: “E creu ele no Senhor, e imputou-lhe isto por justiça” (hb. chashav). É necessário considerar que esta ocorrência antecede a obediência externada por Abraão no que concerne à circuncisão, como sinal da aliança. O texto hebraico esclarece que a fé de Abraão nesta situação, não é considerada como uma forma paralela de justiça (obras), antes, no plano divino, é o meio pelo qual o homem pode atingir a justiça.
De forma mais contundente, Paulo faz citação de Salmos (32.2), trecho no qual achamos Davi proferindo bênção sobre a vida daquele a quem Deus não imputa maldade (Rm 4.8; 2Co 5.19). Numa analogia à ocorrência havida com Abraão e o rito da circuncisão (Gn 15.6), aqui contemplamos a tarefa de Paulo a condenar as boas obras como base para salvação, negando-lhes qualquer mérito para ajustar contas nas relações com Deus.
O apóstolo prossegue esclarecendo que este novo método de justificação inerente à graça divina apresentado no evangelho e que se acha enraizado no Antigo Testamento, mostra que Davi é distinto da maioria de seus contemporâneos em virtude de sua fé, dada a consideração divina da justificação que não valoriza, como coadjuvante à salvação, qualquer atividade benemérita promovida pelo homem. Ele, Davi, não é o autor do conceito que ele mesmo professa (Sl 32.1,2), antes, ele simplesmente registra o fato da bênção, já que possui experiência própria a respeito dessa verdade.
Passamos então à compreensão do estado glorioso vivido pelo que creu, daqui a diante participando do usufruto dos benefícios do depósito da natureza perfeita (sem pecado) alcançada por Cristo na substituição da pena, conforme tratado anteriormente, além da desnecessidade da realização de qualquer bem. Uma justificação nestes moldes só pode ser atendida por Deus, que ao nos justificar, realiza os dois milagres e de modo lícito, já que é o seu próprio sacrifício que resgata as culpas humanas.
Com relação à justificação que se relaciona ao crente, a Bíblia apresenta duas questões:
A partir dessa justificação pela graça, procedida mediante a fé, tornamo-nos participantes de uma série de benefícios: a) Temos paz com Deus (Rm 5.1); b) Estamos preservados de sua ira (Rm 5.9); c) Temos a certeza da glorificação final (Rm 8.30) e d) A libertação presente e futura da condenação (Rm 8.33,34).
Outro princípio de notável valor significativo refere-se à justificação como promotora da qualidade de “herdeiros” segundo a esperança da vida eterna, visto em Tito 3.7: “Para que, sendo justificados pela sua graça, sejamos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna.” A frase “...sendo justificados pela sua graça...” denota um novo estado de aceitação para com Deus, noutras passagens grafado com o título “adoção”, já a expressão “...sejamos feitos herdeiros segundo a esperança da vida eterna” retrata a bênção complementar da nova vida produzida pelo Espírito Santo. Nota-se que a regeneração (v.5), embora sugira novo nascimento ou nova natureza, abrange um estado mais amplo, com melhor significado, isto é, que se refere mais claramente à “naturalização”.
Uma corrente que usa de diligência especial para tratar a matéria da justificação, a calvinista, rememora Paulo considerando o processo pelo qual Deus inflige-nos a salvação, citando-a explicitamente: “E aos que predestinou, a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou” (Rm 8.30). O termo chamou, na linha de compreensão calvinista, refere-se ao chamado eficaz do evangelho, que adiciona a regeneração e produz a resposta do arrependimento atrelado à fé, ou seja, a efetiva conversão por parte do homem.
Após o chamado eficaz e a resposta decorrente demonstrada com a conversão, passa-se à próxima etapa da redenção, que é a justificação. Esta fase do plano salvífico, como elucida Paulo, é procedida pelo próprio Deus: “aos que chamou a estes também justificou...”. A matéria bíblica revela com evidências que a justificação vem depois da nossa fé e com resposta de Deus a ela, qualificando a Deus como justo e justificador daquele que tem fé em Jesus (Rm 3.26).
Faculdade ICP
Pastor Muller