Princípios hermenêuticos de Lutero e Calvino
Princípios exegéticos de Martinho Lutero
Uma das principais figuras da História da Interpretação Bíblica foi Martinho Lutero. cujos princípios de interpretação deram o ímpeto necessário à Reforma Protestante do século XVI. A hermenêutica de Lutero redimiu as Escrituras do cativeiro da exegese medieval e do controle da Igreja Católica Romana. Qualquer estudioso familiarizado com as obras de Lutero, particularmente com os seus comentários, percebe que o método gramático-histórico moderno de interpretação está, muitas vezes, apenas aperfeiçoando a obra do grande reformador.
O objetivo do presente capítulo é avaliar a principal contribuição de Lutero para a interpretação bíblica, ou seja, a busca da intenção do autor humano das Escrituras como sendo o sentido pretendido pelo Espírito Santo e, portanto, o único sentido verdadeiro do texto. Cremos que uma nova apreciação deste princípio simples de interpretação bíblica poderá ajudar a igreja evangélica brasileira a sair das dificuldades doutrinárias em que se encontra no momento.
Crise doutrinária, interpretação bíblica e pregação
Iremos nos concentrar no comentário de Gálatas que Lutero publicou em 1535. Na realidade, esse foi o segundo comentário publicado por ele sobre a epístola de Gálatas. O primeiro data de 1519 e, segundo alguns estudiosos, era superior ao comentário elaborado em 1535, pois se atém mais ao sentido original do texto bíblico. De qualquer forma, o comentário de 1535 representa a hermenêutica mais madura do reformador. Nele, encontramos um sumário do que Lutero pensava acerca da interpretação das Escrituras numa passagem em que ele ataca os exegetas medievais e defensores do papado, com sua característica virulência.
Observe a seguinte declaração: “O que eles [os sofistas] deveriam fazer é vir ao texto vazios, derivar suas idéias da Escritura Sagrada, e então prestar atenção cuidadosa às palavras, comparar o que precede com o que vem em seguida, e se esforçar para agarrar o sentido autêntico de uma passagem em particular, em vez de ler as suas próprias noções nas palavras e passagens da Escritura, que eles geralmente arrancam do seu contexto”.
Obviamente, se perguntado, Lutero acrescentaria mais algumas coisas a este sumário. Suas palavras acima,' porém, revelam claramente que, para o reformador, o alvo principal do intérprete bíblico é determinar o sentido original de uma passagem, e isto pela exegese, cuidadosa. Em “Gálatas, 1535”, Lutero concentra-se insistentemente em determinar a intenção de Paulo em cada passagem. Por exemplo, ele inicia sua análise de Gálatas 2 declarando o propósito de Paulo ao escrever aquela porção da carta e parte para uma crítica a Jerônimo, o qual, segundo Lutero “...nem toca no ponto verdadeiro da passagem, pois não leva em conta a intenção ou propósito de Paulo'’. Mais adiante, comentando Gálatas 1.3, Lutero volta a
criticar Jerónimo. afirmando que o mesmo deixou passar inteiramente despercebido o ponto principal do versículo, por ter falhado em captar a intenção de Paulo ali.
O contexto
Lutero procura determinar a intenção original de Paulo em uma determinada passagem de diversas maneiras. Em primeiro lugar, ele procura ser sensível ao contexto imediato da passagem a ser interpretada. Para ele, o sentido das palavras deve ser encontrado, primeiramente, à luz do assunto em pauta na seção maior em que o texto está inserido. Assim, “came”, em Gálatas 3.3, não pode ser interpretado como paixões sexuais, como alguns exegetas medievais faziam, pois, segundo ele, “nesta passagem, Paulo não está discutindo concupiscência sexual ou outros desejos da came [...] ele está discutindo sobre o perdão de pecados”. Comentando Gálatas 1.17. Lutero afirma que Jerônimo poderia ter facilmente resolvido a questão do que Paulo fez durante os três anos em que passou na Arábia se tivesse prestado cuidadosa atenção às próprias palavras de Paulo.
Em segundo lugar, Lutero procura entender o que Paulo está dizendo em Gálatas à luz do restante do Corpus Paulinus. Não é de se estranhar, pois. que seu comentário esteja cheio de referências a outras cartas do apóstolo, principalmente às cartas principais: Romanos e 1 e 2Coríntios. Por exemplo, ao explicar Gálatas 2.3, que trata da quase circuncisão de Tito, Lutero apela para ICoríntios 7.18, em que Paulo declara sua prática missionária de amoldar-se às necessidades dos que o ouvem. Mais adiante, examinando o significado de Gálatas 3.19, ele acrescenta: “A passagem em 2Coríntios 3.17,18 sobre a face velada de Moisés é pertinente aqui".
Comentando Gálatas 3.1: “Ó gálatas insensatos”, Lutero explica que a aparente rudeza de Paulo se explica pelo fato de que o apóstolo está simplesmente praticando o que ele ensina em 2Timóteo 4.2: “prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não. corrige, repreende e exorta”.
Em terceiro lugar, Lutero está alerta para entender o sentido pretendido por Paulo em uma passagem à luz do contexto mais amplo das demais Escrituras. Ele cita passagens de vinte e três livros do Antigo Testamento, especialmente de Gênesis, Deuteronômio, Salmos e Isaias. Ele emprega o Antigo Testamento como uma fonte abundante de evidências, exemplos e exortações. Para ele, a analogia scriptvrae (analogia das Escrituras) justifica o aplicar-se a Cristo “todas as maldições coletivas da Lei de Moisés”, como Paulo faz em Gálatas 3.13, aplicando a Cristo a maldição de Deuteronômio 21.23. Lutero também cita passagens de quase todos os demais livros do Novo Testamento, especialmente os evangelhos e Atos, na medida em que comenta Gálatas, versículo por versículo.
Assim, ao analisar Gálatas 2.7-9, em que Paulo menciona que Deus atribuiu a Pedro e a ele (Paulo) diferentes ministérios, Lutero comprova as palavras de Paulo com exemplos destes diferentes ministérios (de Pedro aos judeus e de Paulo aos gentios) extraindo-os de Atos, 1 Pedro e Colossenses.
Para Lutero, o método eficaz de explicar passagens das Escrituras que seus oponentes utilizavam para justificar a salvação pelas obras (como Daniel 4.27) era consultar “a gramática teológica”, que para ele significava o ensino total das Escrituras sobre salvação. Um bom exemplo é sua explicação para Daniel 4.27, quando o profeta diz ao rei para “por termo'’ (renunciar, encerrar, acabar) aos seus pecados pela prática da justiça e da misericórdia. Lutero comenta, partindo do ensino total das Escrituras sobre a salvação pela fé que “a gramática teológica demonstra que a expressão 'pôr termo' nesta passagem não se refere à moralidade, mas à fé, e que a fé está incluída na expressão pôr termo”.
A obra exegética de João Calvino
A vasta produção literária de Calvino preenche 59 abundantes volumes da coleção conhecida como Corpus Reformatorum.As Institutas, em suas várias edições, ocupam quatro volumes. Cinco ou seis volumes contêm os escritos ocasionais e outros onze a correspondência de Calvino.
Do restante, nada menos de 35, corresponde às suas obras bíblicas, que incluem os comentários, provavelmente baseados em preleções, sobre todo o Novo Testamento, exceto 2 e 3João e Apocalipse, e sobre o Pentateuco, Josué, Salmos e Isaías. Diante disso, o estudioso Mickelsen acertadamente declarou: “Calvino era basicamente um intérprete bíblico e somente em segundo lugar um teólogo” (Interpreting the Bible, p. 39).
A estas produções literárias ainda devem acrescentar-se transcrições palavra por palavra de suas preleções (sermões) em que fez a exposição, versículo por versículo, de Gênesis, Deuteronômio, Juizes, 1 e 2Samuel, Jó, quase todos os Profetas, alguns Salmos, parte de uma harmonia dos evangelhos. Atos. 1 e 2Coríntios, Gálatas, Efésios, 1 e 2Tessalonicenses, as epístolas pastorais e Hebreus.
Assim, Calvino revelou suas posições concernentes às doutrinas e tratados bíblicos.Vejamos:
Pressupostos de Calvino
A autoridade das Escrituras.
A prova última da autoridade das Escrituras é que o próprio Deus se dirige a nós nos documentos bíblicos (Inst., 1.7.1). Na Bíblia, os crentes têm um encontro pessoal com Deus que os convence da verdade da mensagem nela contida.
A necessidade de iluminação: o testemunho interno do Espírito Santo
“A palavra nunca terá crédito nos corações humanos até que seja confirmada pelo testemunho interno do Espírito” (Inst.,1.7.4). A fé nas Escrituras e a interpretação das Escrituras caminham juntas. Portanto, o exegeta deve aproximar-se das Escrituras com reverência e humildade.
O objetivo da interpretação: a edificação da igreja.
A exegese deve produzir fruto e ser útil. Numa cana a um pastor de Orleans, Calvino declarou: “Em todos os seus estudos, tome cuidado para não ficar meramente buscando entretenimento, mas trabalhe com o propósito de ser útil à igreja de Cristo”. A exegese não pode ser alienada, antes, envolve a participação direta na vida e nas lutas da igreja.
A Escritura é sua própria intérprete
Essa era uma expressão favorita de Calvino. A aplicação deste pressuposto era facilitada pelo grande conhecimento bíblico do próprio Calvino e sua memória privilegiada.
Princípios hermenêuticos de Calvino
As correspondências de Calvino mostram que ele estudou cuidadosamente os diferentes métodos de interpretação utilizados por Lutero, Melanchton, Bucer. Zuínglio. Ecolampádio e outros. Ele expressou suas idéias sobre a tarefa do exegeta bíblico em uma carta que escreveu a Simão Gryneus, em 1539, como dedicatória do seu comentário de Romanos.
Brevidade e clareza: o traço distintivo do método exegético de Calvino é a “brevidade lúcida” (brevitas et facilitas), ou seja, a busca do sentido “comum” ou “simples” do texto ÇNeuser, Calvinus Sacrae Scripturae Professor, 94-95). Neste aspecto, Calvino nutria grande admiração pelo pregador e expositor bíblico do quarto século, João Crisóstomo (aproximadamente, 407 d.C.). A tarefa do expositor é aclarar a intenção do autor bíblico e não obscurecê-la com comentários prolixos, refutação de opiniões divergentes etc. O objetivo maior é a edificação dos fiéis e da igreja.
A intenção do autor: na carta a Gryneus, Calvino diz que o maior dever do exegeta é tomar compreensível o sentido do autor que ele está explicando. Isso envolvia a investigação da linguagem distintiva de cada autor (e um sólido conhecimento das línguas originais), bem como das circunstâncias históricas, geográficas e sociais (a situação do autor). Por exemplo, ao comentar os salmos, ele analisava cuidadosamente as ocasiões e instituições cultistas que estariam por detrás dos mesmos. Calvino também dá muita importância ao estudo do contexto: muitos problemas exegéticos podem ser explicados quando o intérprete investiga o contexto de uma passagem. Interpretação histórico-gramatical.
Ênfase no sentido literal: como Lutero e outros reformadores, Calvino também insistiu no sentido literal da Escritura como a única base adequada para a exegese. Em seu comentário de Gálatas 4.21-26, ele afirma que introduzir sentidos múltiplos na Escritura (alegorização) é um “artifício de Satanás”. Na introdução ao seu comentário de Romanos, ele adverte: “É uma audácia próxima do sacrilégio usar as Escrituras ao nosso bel-prazer e jogá-las como uma bola de tênis, o que muitos já fizeram [...] A primeira tarefa do intérprete é deixar o autor dizer o que ele diz, ao invés de atribuir-lhe o que achamos que deveria dizer”. Este princípio levava Calvino a ser muito cauteloso quanto às interpretações cristológicas do Antigo Testamento. Bons exemplos são os seus comentários de Gênesis 3.15 (luta entre Satanás e a humanidade) e do Salmo 2 (referência a Davi). Ele entendia que as referências messiânicas nos Salmos são, em geral, tipológicas antes que proféticas.
Interpretação cristológica: a interpretação cristológica da Escritura deve ser histórica, bem como teológica. Neste aspecto, Calvino rompeu com a interpretação espiritual do passado e até mesmo com a idéia de Lutero de ver “Cristo em toda a Escritura”. Para ele. Cristo era o cumprimento do Antigo Testamento e o tema do Novo Testamento, mas isso não significava que todo versículo necessariamente continha alguma referência oculta a ele. A abordagem de Calvino é mais sutil: o intérprete deve relacionar cada passagem da Escritura com Cristo, qualquer que seja o sentido primário da mesma.
Conclusão
0 estudo pessoal e a Igreja
Aqueles que receberam o dom do ensino na igreja (1 Co 12.28 e Ef 4.11) têm uma imensa responsabilidade e devem ser exatos nos seus estudos. Paulo advertiu a Timóteo: “Procure apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15).
Paulo não tomou por certo que Timóteo teria automaticamente a mente do Senhor na interpretação. Pelo contrário. Deu a entender que isso envolveria um processo cuidadoso e árduo de estudo. A expressão traduzida por “procure” ressalta, na sua forma grega original, a “diligência”, ao passo que a frase “que maneja bem” é literalmente “cortar reto”, no texto original. A idéia subentende traçar o leito para construir uma estrada. O que isso significa? Que o intérprete cuidadoso precisa manter um caminho direito na Palavra de Deus para aqueles que dependem de sua instrução.
E importante ressaltar o contexto imediato desse versículo. No verso anterior, mas precisamente o 14, vemos que a interpretação correta é vital para aqueles que escutam o pregador, que fazem parte da sua congregação. Nossa exatidão ou erro na interpretação determinará o modo de vida deles. No versículo 16, notamos que a interpretação correta também é crucial como defesa contra a “gangrena” dos falsos mestres. Esses homens concorrem com o pregador para obter a atenção da congregação, e somente uma interpretação correta desviará o impacto negativo que eles podem causar.
Fica claro, na base desses versículos, que edificamos uma igreja forte sobre a interpretação correta da Palavra da verdade. Para isso, precisamos de estudos diligentes. Gostaríamos de acrescentar que o nosso zelo pelo estudo pessoal não deve ser confundido com a arrogância que nos impeça de aprender as coisas que os outros crentes ficaram sabendo primeiro. A Bíblia declara que devemos aprender uns com os outros, e que alguns são separados para mestres, podendo ensinar por meio de mensagens faladas ou da página impressa.
Uma das fontes principais de entendimento cristão é a literatura: bons livros-textos e comentários cristãos. Embora esses não devam substituir o estudo bíblico pessoal, eles, no entanto, nos fornecem informações que talvez não tenhamos tempo, recursos ou capacidade de descobrir de outra forma. Podem nos ajudar a manter o equilíbrio e a evitar perspectivas estreitas e individualistas. Podem, também, aumentar a nossa capacidade para a interpretação bíblica diligente.
Quando um homem se gaba de não ter lido nenhum outro livro senão a Bíblia, cremos que está escondendo uma arrogância extrema debaixo da capa da superespiritualidade. Nenhum crente está tão perfeitamente equilibrado na sua personalidade, tão devoto na sua hora de- vocional e tão diligente nos seus estudos da Bíblia que não possa tirar proveito da sabedoria de outros crentes, copilada no decurso dos séculos.
Apoio forma um contraste com o intérprete orgulhoso que quer limitar seus entendimentos àquilo que estuda pessoalmente. Embora Apoio fosse um homem de cultura, com conhecimentos eficientes das Escrituras e capacidade de pregar com exatidão a respeito de Jesus (At 18.24-26). aceitava, de bom grado, as instruções de dois humildes artesões que faziam tendas (v. 26). Como resultado, conseguia ajudar a igreja com uma capacidade ainda maior (v. 27).
O estudo bíblico pessoal é insubstituível
Finalmente, asseveramos que os comentários e os livros de estudo bíblico nunca poderão substituir o estudo bíblico pessoal, mas poderão ampliar os nossos horizontes, ajudar a explicar fatos técnicos e a verificar as nossas interpretações.
O filosofo espanhol Jorge Augustin Nicolas de Santayana, observou: “Aquele que não aprende da história vè-se condenado a repeti-la” (Virkler 1981, p. 48).
Essa declaração ecoa a queixa de Salomão de que os homens tendem a repetir os seus erros. Vejamos: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se tomará a fazer: de modo que nada há novo debaixo do sol” (Ec 1.9).
Faculdade ICP
Pastor Muller